quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Das terras de Benvirá, pra não dizer que não falei das flores.



Em 1960 instalava-se definitivamente o governo comunista em Cuba, após vencer militarmente o exército regular apoiado pelos Estados Unidos. Depois de algum tempo de transição para acomodar os interesses e forças heterogêneas que ganharam a guerra em 1959, o comandante Fidel Castro tratou de organizar um governo formal, que desse ao país aquilo que a revolução havia prometido. Foi nessa época que Che Guevara, o maior ídolo da população, era nomeado ministro da economia. Diz-se que sua nomeação foi fruto de um equívoco, como logo restou provado, diante do fracasso de sua gestão. Mas, o equívoco de que fala a tradição  popular é outro. Consta que Fidel dirigia a plenária de montagem do governo, onde se lançavam candidatos e estes eram votados pelos delegados escolhidos em suas respectivas bases. Quando chegou a hora de nomear o ministro da economia, Fidel teria perguntado, "Há algum economista na plenária?".  Guevara, como era meio surdo, além de asmático, entendeu que buscavam por um “comunista” e respondeu imediatamente “Yo, señor, yo lo soy”. Ora, sendo o Che uma pessoa tão querida e famosa, e, além disso, preparado tecnicamente para o cargo, o próprio Castro tratou de indicá-lo por aclamação. Posteriormente nosso ministro "economista" mandaria todo mundo para o campo a plantar cana, produzindo uma super safra que encontrou o mercado mundial abarrotado de açúcar. Foi o começo de seu fim, pois, demitido do ministério, assumiu a tarefa de levar a revolução a outros povos, desempenhando uma espécie de ministério de exportação ideológica. Foi nesse papel que esteve no Brasil e foi condecorado pelo então presidente Jânio Quadros. Depois iria seguir sua estratégia de criar “mil vietnans”, até ser morto na Bolívia.

A presença de Guevara, o ativismo sindical da CGT, a renúncia de Jânio e as reformas de base do novo presidente Jango Goulart assustavam a elite brasileira, que passara a freqüentar os quartéis para conversas reservadas com os generais comandantes.  Já havia sido tentado um golpe militar em 1961, mas batera de frente com o governador do Rio Grande do Sul, que organizou uma rede radiofônica contra a ilegalidade e se aliou ao comandante local, prometendo resistência militar e rachando as forças armadas.  

Em finais de março de 1964, não teve jeito e veio o golpe. Reagindo a uma revolta de marinheiros e àquilo que os comandantes militares mais temem, a insubordinação, um general mineiro se mandou com suas tropas para o Rio de Janeiro, afim de cercar o palácio Guanabara, onde costumava ficar o presidente da república, apesar da capital federal já ser em Brasília.  No início, as lideranças civis conservadoras apoiaram integralmente a ação que tomou o poder e mandou o presidente João Goulart para o exílio. Com o passar dos meses, entretanto, percebeu-se que os generais gostaram do brinquedo. Castelo Branco já falava em estender o período de exceção e cancelou as eleições presidenciais de 1965. Quando se deram conta, todos os líderes  civis estavam jogados à sarjeta, ignorados pelo novo poder. Então organizaram a Frente Ampla, que juntava no mesmo palanque lideranças antagônicas como as do PTB, UDN, PSD e vários caciques regionais, e deram um banho eleitoral nos candidatos dos militares aos governos dos estados em 1966.  Pergunta se os militares gostaram disso.  Em 1967 a ditadura se escancarou e passou o comando ao general Costa e Silva, traindo definitivamente seus aliados civis como Carlos Lacerda, Ademar de Barros, Nei Braga, Magalhães Pinto, Jucelino Kubitcheck e tantos outros. Em seguida, Costa e Silva promulgou uma nova constituição e uma lei de segurança nacional que botou todo mundo em barbas de molho.

Estávamos entrando nos anos do “milagre brasileiro”, combinando repressão das liberdades com altas taxas de crescimento econômico, concentrado em empreendimentos de grande porte. Delfin Neto dizia abertamente: “É preciso fazer o bolo crescer, para depois distribuí-lo”. A minha fatia pessoal veio na forma de ascensão social. Deixei a roça no final dos anos 50 e os 70 me encontraram no exército brasileiro, de onde saí para ser funcionário de companhia estatal. Meu pai transformou-se de lavrador em motorista de caminhão. Graças às transformações sociais feitas pela ditadura, não foi pouco o progresso da família Duarte, mas, ingrato que sou, entrei na onda das passeatas estudantis.

OS ANOS DE CHUMBO
O ano de 1968 foi uma festa, à qual alguns analistas mais criteriosos chamam de “porraloquice geral”.  Entre variadas tolices, uma foi a do  deputado sangue azul carioca que deu a entender que as esposas dos milicos não lhes deviam conceder favores sexuais na semana da pátria. Depois ele mesmo disse ter sido uma idiotice, uma frase infeliz no meio de um discurso no pinga fogo do fim de expediente, algo que normalmente sequer seria transcrito aos arquivos da casa. Mas, todos os olhos do regime estavam voltados para a guerra fria e a “subversão comunista” que se alastrava a partir da revolução cubana, assim que o tal discurso infeliz virou questão de honra. Os comandantes militares queriam por que queriam processar o deputado. Para isso, precisavam de licença da Câmara Federal, que lhes negou o pedido na seção de 12 de dezembro. Pois bem, no dia 13 o general Costa e Silva editou o Ato Institucional número 5, fechando o congresso. A partir daí o caldo engrossou e entramos nos anos de chumbo.    

Nessa época surgiram os grandes ídolos da música popular brasileira, que ainda hoje são as nossas maiores estrelas. A Tropicália de Caetano, Gil, Gal e Betânia, o gênio inovador de Tom Zé, Hermeto Pascoal e Sivuca, o lirismo de Chico Buarque,  a alegria da Jovem Guarda sob a liderança de Roberto e Erasmo Carlos, o som imaginário de Milton Nascimento e o Clube da Esquina, todos capitaneados pelos já famosos Tom Jobin e Vinícius de Morais, que vinham da Bossa Nova do final dos anos cinquenta. Além de importantes movimentos regionais espalhados pelo país. Sobre todos eles brilhava uma estrela única: seu nome era Geraldo Vandré.  A juventude de hoje não tem a menor noção da importância desse personagem em nossa história musical. 




Entre 1964 e 1968 ninguém foi capaz de ameaçar sua liderança popular inconteste. Na luta democrática contra o regime militar não houve canções de protesto que chegasse aos pés das que fez Geraldo Vandré.  No plano internacional, a música de protesto também reinava absoluta, contestando o sistema de valores então vigente. A juventude norte americana que se mobilizava contra a Guerra do Vietnan tinha em Bob Dylan o grande poeta das longas baladas anti burguesas, mas ele próprio rejeitava o papel de protagonista da história. Queria ser apenas poeta e músico, enquanto no Brasil, Vandré assumia o papel de condutor da luta política cotidiana e compunha a canção “Caminhando”, onde as centenas de milhares de pessoas em passeatas pelas ruas de São Paulo e Rio de Janeiro pediam a volta da democracia, entoando os versos que diziam “Vem, vamos embora / que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora / não espera acontecer.” Mais direto que isso seria impossível. Por isso a primeira coisa que os militares fizeram quando publicaram o AI-5 foi proibir a execução desta e outras canções de Vandré. E iniciaram a caçada implacável. Caetano e Gil foram presos e mandados para o exílio em Londres. Chico e Vinícius fugiram para a Itália. Vandré saiu clandestinamente para o Chile, de onde tomou o caminho da França. O Brasil mergulhava no terror. O sistema de segurança nacional apertava o cerco, fechava as organizações políticas e as universidades, enquanto organizava os núcleos de combate para-militar ao que chamavam de “subversão comunista”. Proibida a atividade política normal, o objetivo estratégico do regime era empurrar toda oposição não consentida para a luta armada. Os partidos comunistas tradicionais, PCB e PCdoB, se fracionaram em várias tendências que partiram para o confronto armado, algumas procurando atuar nas zonas rurais do interior, mas, a maioria buscando os grandes centros, onde passaram a praticar ações de terrorismo explícito. Dessa época é o assalto que a turma de Dilma Rousseff praticou ao cofre de Ademar "rouba mas faz" de Barros, onde o grande figuraço paulista guardava a grana da corrupção. Posteriormente, este dinheiro financiaria várias ações armadas praticadas por grupos revolucionários clandestinos. Foram presas fáceis dos órgãos profissionais de repressão, treinados  pela CIA norte americana.    

O QUE FOI FEITO DE GERALDO VANDRÉ?
Quando lhe fui apresentado num restaurante em Floripa, eu não sabia bem como me comportar. Afinal, ali estava um de meus maiores ídolos da juventude, alguém que permaneceu no meu inconsciente por décadas, cada vez mais iluminado pelo brilho da utopia perdida.  Não era fácil acreditar que aquele senhor de aparência doentia havia sido o vigoroso e bonito cantor com voz potente de aboio nordestino, que aparece ainda hoje nos vídeos sobre os festivais de música na década de sessenta. Havia tanto o que perguntar e ouvir, mas eu não sabia como começar.  Então, falei da notícia que circulara há algum tempo, dando conta de que ele havia ganho um processo de reparação, sendo restituído a seu antigo emprego no Ministério da Agricultura, já na condição de aposentado. Quando comecei a tocar no tema, com todo cuidado, meu amigo Adolfo iniciou uma sequência de chutes por baixo da mesa e quando olhei para ele, seus olhos gritavam “pare, não toque nesse assunto!” e eu parei. Geraldo Vandré fez que não era com ele, e talvez não fosse mesmo.  A partir dali passei a acompanhar a conversa insossa e nonsense dos dois e a única coisa que me lembro de interessante, foi que Geraldo chamou o garçom e passou a examinar um a um os doces árabes numa cesta, segurando-os nas mãos, para desespero do garçom, que lhe chamou a atenção: “Senhor, só pegue aqueles que vai comer”. Vandré se encheu de vergonha e comprou toda a cesta, pondo-se ele e Adolfo a rirem como se fossem crianças. E quem disse que não eram?

Apareceu estes dias na TV Globo. Hoje ele tem 75 anos de idade, mas aparenta mais de 90.  O único show que realizou no Brasil desde 1968 foi numa festa em homenagem à Força Aérea Brasileira, em 1995, acompanhado por um coral de cadetes. É sabido que quando voltou ao Brasil, no final de 1973, desembarcou em Brasília e foi imediatamente conduzido às instalações da aeronáutica. Ele garante que nunca foi torturado. Essa afirmação seria perfeitamente confiável se ele não entrasse em contradição com sua história, ao declarar também que “nunca fez música de protesto”, que “nunca foi anti-militarista”,  que “nunca pretendeu ser líder de nada” e que “se a canção Caminhando virou hino anti-ditadura”, não foi por sua vontade.  Declarações que deixam sem muita credibilidade a saúde mental de quem a faz, um autor que tinha orgulho da qualidade de seu trabalho e do impacto que causava nas massas, alguém capaz de afirmar que trazia certezas e esperanças para trocar por dores e tristezas, que bem sei, um dia ainda vão findar, um dia que vem vindo e que eu vivo pra esperar, na avenida girando, estandarte nas mãos pra anunciar”. Ou que ameaçava gravemente Vim de longe e vou mais longe, quem tem fé vai me esperar, escrevendo numa conta pra juntos a gente cobrar”.  

Entre outras asneiras, ele afirma hoje que nunca se interessou pelo meio artístico, que quase não conhecia ninguém, blá, blá, blá ... Ora, ele lançou vários monstros sagrados da música brasileira, como Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Airto Moreira e Geraldo Azevedo, entre outros. Teve contatos com todos os movimentos, dos roqueiros à bossa nova, do samba de morro à tropicália. Hermeto Pascoal nos contou, em show na Lagoa da Conceição, que Vandré ficou puto ao ver o então mais famoso sambista brasileiro, Jair Rodrigues,  iniciar com um sorriso bobo-alegre  a apresentação de Disparada no festival da Record de 1966, quando a letra altamente politizada alertava “Prepare seu coração para as coisas que eu vou contar” e pedia alguém mais centrado na interpretação. Jair Rodrigues havia sido escalado pelos interesses comerciais da gravadora e da TV. No intervalo, ele chamou Jair num canto e passou-lhe um tal sabão que, a partir daí, Jair se comportava com um legítimo vaqueiro revolucionário. Imagine se alguém com tamanha consciência de seu papel dramático pode afirmar que nada foi intencional.

OS ANOS DESESPERADOS
Durante seus cinco anos de exílio Geraldo Vandré vagou pela Europa, até que encontrou o músico pernambucano que iria criar o grupo Quinteto Violado. Quando Marcelo Mello viu as novas canções de Vandré, não descansou enquanto não o fez gravá-las todas, gerando o álbum que se denominou “Das Terras de Benvirá”, feito inteiramente nas igrejas francesas, só com a voz de Vandré e o violão de Marcelo, da mesma forma que Caetano Veloso mandava de Londres o LP “Transa”, só com sua voz e o violão de Jards Macalé, pois não havia dinheiro nem recursos de produção profissional para aqueles rebeldes perdidos no mundo. Cada exilado ou viajante que desembarcava no Brasil, trazia debaixo do braço uma fita cassette do futuro álbum, que aos poucos foi se espalhando clandestinamente, até virar sucesso absoluto em todas as casas e encontros de esquerdistas, nos centros acadêmicos e nas últimas organizações que sobraram com alguma autonomia, como a Pastoral Operária. Era, antes de tudo, um canto de rendição. Um grito de dor diante da derrota da luta armada, e que buscava construir esperanças de novos caminhos para o futuro. Lembro-me das audições que fazíamos em Curitiba, todos em silêncio a acompanhar no gravador a voz lancinante de Vandré “... e perdoa amiga, que eu não vá correndo hoje te abraçar. / Nem cortar caminho, nessa caminhada que é pra te encontrar. / Que eu guarde a esperança, que vem vindo o dia de poder voltar. /  Sem ter na chegada, que morrer amada, ou de amor matar”.  O irmão de um militante do PCdoB, amigo nosso, ouviu este disco até meter uma bala na cabeça. Eram os anos desesperados. No começo da década 70 havia três saídas: o exílio, a guerrilha ou a alienação. Com o passar do tempo, sobrou apenas a última. 
    


Numa entrevista antiga para a TV Cultura, o poeta e músico Renato Teixeira fala de seus grandes inspiradores e, referindo-se a Vandré, afirma "Esse era valente mesmo e soltava um fogo perigoso que se alastrava por todo lado". Agora, o programa da Globo News começa com uma pergunta: “O que aconteceu com Geraldo Vandré?” e este responde com certo sorriso bobo: “Ficou fora dos acontecimentos”. Portanto, nem Vandré sabe o que aconteceu com ele. Dali para frente o programa é um rosário de lugares comuns, nenhuma informação nova, a não ser as incongruentes homenagens à FAB e as confusões históricas do entrevistado. Muitos dizem que ele foi lobotomizado. Outros fantasiam que foi muito torturado e sofre da Síndrome de Estocolmo, aquela doença mostrada no filme O Porteiro da Noite, que faz uma linda judia voltar para seu torturador nazista, mesmo tendo um marido maravilhoso na América. 

Além de outro concerto em homenagem aos militares da aeronáutica, diz Geraldo Vandré que pretende gravar no exterior as mais de 30 composições inéditas, surpreendentemente escritas em espanhol. Nem tudo, entretanto, é delírio em suas lembranças: Minha canção "Caminhando" foi proibida em 1968 e foi a causa de eu ir embora do Brasil. Mas, até hoje ela rende impostos e movimento econômico, pois é regravada constantemente e está sempre nas paradas de sucesso, e, de fato, a canção está novamente fazendo sucesso na voz de Zé Ramalho, mais de quarenta anos depois.  A "Disparada" nunca saiu do repertório de shows do Jair Rodrigues, sucesso garantido. Mas, de novo volta ao delírio quando afirma “Por isso não aceito a anistia, pois ela só se aplica a alguém que tenha cometido crime”.  Ora, Vandré, dos anistiados brasileiros da ditadura, 99% cometeram o único crime que você também cometeu no passado: o de opinião.



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