segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Missões, a conquista do paraíso




Minha suite no Hotel Continental dá para a praça central de Posadas, capital da provincia de Missiones, nordeste da Argentina. A chuva fina que cai nesta manha de domingo nao impede a visao ampla e limpida do horizonte descortinado por detrás dos campanários da Catedral, do outro lado da praça, e que servem como moldura para o imenso Rio Paraná e os campos e cidades pertencentes ao vizinho Paraguai, que avisto ao fundo. 
Ao observar as torres da fronteiriça cidade de Encarnación, imediatamente veio-me à lembrança o som dos sapucais que ouvi neste amanhecer domingueiro, sempre que o grupo musical que estivesse no palco do festival folclórico tocava um chamamé, considerado um dos estilos clássicos do folclore argentino e motivo de orgulho nacional. O detalhe, quiçá perturbador, é que os sapucais sao quase sempre entonados em meio a versos cantados em Guarani, a ancestral língua dos habitantes pré-hispânicos de todos estes campos de terras vermelhas que, na época das chuvas, tornam cor de sangue os rios Paraguai, Paraná e Uruguai, território da imensa naçao que os jesuítas espanhóis sonhavam construir e onde permaneceram por mais de 150 anos.
Existiram 54 cidades ao todo, das quais sobraram vestígios de pouco mais de 30, construidas pelos Jesuitas a partir de 1610 na regiáo da atual província de Missiones, expandida por uns 150 km além das atuais fronteiras de Paraguai e Rio Grande do Sul. Em seu apogeu, por volta de 1730, somavam 150 mil índios guaranis, organizados em comunidades primitivamente socialistas, sob severo governo militar exercido pelos caciques das tribos, porém sob comando direto dos padres. Apenas dois padres moravam permanentemente em cada comunidade, que variavam entre 3 e 7 mil habitantes. Impossível imaginar centralismo e autoridade mais eficiente. Náo nos esqueçamos que os guaranis viviam em choças na mata e migravam constantemente em busca de terras mais frescas, e, no entanto, em pouco tempo haviam se convertido em trabalhadores disciplinados, aceitando aparentemente com prazer a nova ordem. Claro que isto náo se deu do dia para a noite, mas, sim, a partir de cuidadosa estratégia posta em prática pelas lideranças jesuíticas. Quando iniciavam uma nova missáo, por exemplo, preocupavam-se com a educaçao das crianças e deixavam os adultos professarem à vontade seus velhos cultos. Assim, garantiam a conversáo das novas geraçoes. Isto é o que se chama projeto de longo prazo. Evidentemente muitos jesuítas morreram ao tentar introduzir os novos costumes, mas, o que é uma vida diante de propósito estratégico táo grande?



Todas as cidades dependiam diretamente do Provincial da Companhia de Jesus, curiosamente localizado em Córdoba, à mais de mil quilômetros dos cenários missioneiros. Por que terá sido? Náo teria sido mais fácil se instalarem em Assunción ou Corrientes? Sáo questóes históricas importantes, que pretendo averiguar.
Já Córdoba, por sua vez, recebia ordens diretamente do principal da Companhia, no Vaticano, embora fizessem bom papel nas relaçoes com a corte espanhola. Esta mania de servir a dois senhores talvez tenha decretado o fim da experiência, pois eles foram declarados personas-non-gratas em 1753 e mandados de volta ä Europa. Justamente nesta época dava-se o auge do confronto com os bandeirantes portugueses, que invadiam as Missóes, à cata de máo de obra escrava. Lembremo-nos que o massacre de Sepé Tiaraju, em Sáo Miguel (RS) foi bem nestes dias.  Por que razáo os espanhóis, ao invés de auxiliarem seus aliados na luta contra os portugueses, resolveram, ao contrário, expulsá-los das reduçóes, entregando estas aos Franciscanos, os quais as levariam rápidamente à decadência e falência? É o que também pretendo averiguar, embora já possa antecipar minha opiniao pessoal. Sendo os jesuítas náo apenas padres, mas, também guerreiros de rígida formaçáo militar, intelectuais, artesáos e artistas de diversas especialidades, com uma tremenda capacidade de organizaçao estratégica, seria natural que os militares espanhóis, e até outras ordens religiosas, temessem a possibilidade de que viessem a constituir um império autônomo na área das Missiones. Afinal, eles tinham a seu dispor um exército de pelo menos 30 mil guerreiros Guaranis adultos, fortes e bem alimentados. O que lhes faltava eram armas, pois, foram deixados ao relento pelos espanhóis, combatendo os bandeirantes com lanças e flexas. Foi justamente quando solicitaram autorizaçao para se armarem, que o Papa lhes cancelou a delegaçao para a evangelizaçao dos índios. Acordo secreto com o rei de Espanha? Quem vai saber, se os historiadores não nos dizem nada.  
Deste verdadeiro império à parte sobraram poucos sinais, mas, uma imensa herança cultural, que é o orgulho e a identidade do povo missioneiro dos dias atuais, incluindo os gaúchos brasileiros. 




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