domingo, 5 de fevereiro de 2012

Sangue em Atocha


A devoção a Nossa Senhora é tão antiga quanto o cristianismo e consta que foi São Lucas, o apóstolo, o primeiro escultor de uma imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus, feita na cidade de Antióquia, no antigo Oriente Próximo. Já na idade média surgiu em Madrid uma igreja com a imagem da Mãe Maria com o Menino, e o povo passou a chamá-la Nossa Senhora de Atocha, supostamente por que a palavra Antioquia tinha dado lugar a um nome mais fácil de pronunciar: Atocha. Durante certo tempo da ocupação árabe em Madrid, os soldados cristãos só podiam ser alimentados na prisão por seus parentes, desde que a comida fosse ali entregue por garotinhos. Aqueles que não tinham meninos em suas famílias estavam condenados à morte por inanição, por isso suas famílias imploravam a Nossa Senhora de Atocha por um milagre. Consta que cada um desses prisioneiros sem garotos na família, de tardezinha recebia a visita de um menino trazendo sua cesta de comida. Depois, a população cristã veio a constatar que o Menino na imagem da igreja de Atocha estava com os pés gastos, dando conta da autoria do milagre, gerando assim a lenda que se espalhou mais ainda depois da expulsão dos árabes.  Consolidada Madrid como capital, em 1622 naufragou no mar do Caribe o galeão Nuestra Señora de Atocha, afundando para sempre uma imensa fortuna em ouro e prata do Peru e do México, pérolas da Venezuela e esmeraldas da Colômbia, tesouros que estavam sendo transportados à Corte de Madrid. Apenas cinco das 265 pessoas a bordo sobreviveram e até hoje aventureiros mergulham atrás dessas riquezas. Quis o destino que a estação metro-ferroviária principal de Madrid ficasse justamente no distrito de Atocha.
A manhã do dia 11 de março de 2004 parecia anunciar mais um dia rotineiro de final de inverno na Grande Madrid. Era uma quinta feira fria, porém iluminada pelo sol, os primeiros botões de rosas vermelhas se preparavam para a primavera, que já ameaçava ressurgir  nos jardins das estações ao longo da linha de Alcalá de Henares. A cada parada dos trens que se dirigiam para a estação central, milhares de trabalhadores apressados se acomodavam nos vagões lotados, prontos para iniciar mais um dia de trabalho duro. Gente de todos os tipos e de todas as raças, incluindo imigrantes latino-americanos, africanos  e árabes,  grande parte deles clandestinos na grande capital espanhola. Pessoas que abandonaram seus países miseráveis e partiram em busca do sonho de fazer na Europa sua independência financeira, até poderem voltar para sua terra natal, em paz e com dinheiro suficiente para abrir algum negócio e viver dignamente junto aos seus.
A viagem matutina diária começa em Alcalá, cidade alta onde sempre sopra uma brisa fresca no verão e imagino que muito gelada no inverno, com nevascas frequentes. Suas ruas são retas e seus edifícios muito brancos, de uma claridade quase incômoda. É a cidade de Cervantes, pai da literatura espanhola e criador do mito  Don Quixote de la Mancha, o cavalheiro andante que lutava contra os moinhos de vento da injustiça.  Entre Alcalá e o centro de Madrid são uma dúzia de pequenos municípios e pequenos distritos,  alguns bonitinhos e bem arborizados, outros verdadeiros pombais de cimento armado, porém todos com suas simpáticas e bem ajardinadas estações de trem, que eu percorri numa viagem em junho de 2001 e jamais esqueci.
Bem cedinho para o frio que ainda fazia, milhares de trabalhadores haviam deixado suas casas no subúrbio e se aproximavam da estação central de Atocha, num curto intervalo entre os quatro comboios lotados que seriam atingidos pela tragédia daquela manhã. Quem poderia supor que, em pleno tempo de paz e grande prosperidade da nação espanhola, um grupo de 29 pessoas ensandecidas, absolutamente dominadas por um ódio inexplicável contra a raça humana, pudesse ter colocado  treze bombas (que número cabalístico!) espalhadas por vários lugares dentro dos comboios e da própria estação. Dez bombas explodiram num intervalo de três minutos, por volta das 7:40 da manhã, causando a morte de 191 pessoas e quase dois mil feridos. As outras três bombas estavam programadas para serem detonadas algum tempo depois, suprema crueldade, quando os serviços de emergência tivessem sido acionados e estivessem prestando os primeiros socorros. Algo aconteceu e esses artefatos não explodiram, o que, segundo a polícia, possibilitou a identificação dos primeiros suspeitos, pois as bombas estavam colocadas dentro de suas mochilas, deixadas nos pontos planejados para a detonação. 
O governo espanhol, atônito, imediatamente acusou o grupo separatista basco ETA, que recusou terminantemente participação no crime, até que poucos dias depois o atentado foi assumido por certa organização autodenominada Brigadas de Abu Hafs Al Masri.  No decorrer das semanas seguintes de investigações, vários suspeitos foram presos, outros se suicidaram quando cercados pela polícia, e alguns outros foram acusados de estarem em rede com  a tal Al Qaeda, tristemente famosa pelo 11 de setembro de Nova Yorque, de cuja existência eu até chego a duvidar, por razões que não vêm ao caso neste momento. Apenas um dos presos pela polícia teve participação efetiva na colocação das bombas, já que todos os demais se suicidaram ou foram mortos pela polícia. A pena  que este acusado recebeu é a máxima que se pode aplicar na justiça espanhola, que, assim como na brasileira, é de trinta anos de prisão. 
Independente dos processos e da justiça boa ou ruim, a pergunta que me faço é  que razões poderiam levar um grupo de seres humanos e praticar gesto tão medonho? E por que escolheram como alvo simples trabalhadores operários, a estrutura mais frágil da pirâmide social? Tudo bem, este detalhe passa a ser irrelevante diante da insanidade do ato.  Teria sido o ódio racial e religioso? Conheci de perto o confronto de civilizações que se desenrola surdamente entre espanhóis cristãos e  muçulmanos, uns que se acham donos da nação por direito divino e outros que dela não abrem mão,  herdeiros dos antigos povos que ocuparam parte da Espanha por oito séculos. Entretanto, jamais suspeitaria um segundo desses espanhóis de pele morena, os mouros,  seguidores da melhor tradição da cultura islâmica, humanista e profundamente cordial no trato com os diferentes, assim como os nossos “turcos”, que se tornaram tão brasileiros como nós mesmos. Não, os árabes espanhóis jamais apoiariam tamanha barbárie. Tampouco pode ser culpa das esquerdas revolucionárias, mesmo que nos velhos tempos o terrorismo tenha sido aprovado como arma de luta, até por líderes do porte de Lenin, Trotski e tantos outros, aliás, tanto à esquerda como à direita. Não creio que a luta política atual na Espanha tenha espaço para esse tipo de terrorismo brutal, pois até grupos como o ETA, quando usam violência, o fazem contra prédios públicos ou dos grandes capitalistas, e raramente contra pessoas, ainda mais em se tratando de quem se agrediu no episódio.  Creio que apesar de gritante, a pergunta não tem resposta.  Não dá para explicar o absurdo, a não ser por conta da loucura inerente ao gênero humano.
Madrid é uma cidade bonita, limpa, organizada, alegre e progressista. É a capital do mundo hispânico, onde a gente encontra representantes de todos os povos que o compõe, seja num restaurante típico mexicano ou numa casa de tangos argentina. A democracia e a tolerância estão por toda parte. É uma metrópole para onde se dirigem os grandes talentos espanhóis, desde os melhores toureiros até as grandes divas bailarinas de flamenco, que, depois de ralarem o tempo necessário até provarem seu valor, encontram na capital a consagração merecida.  Nada disso repara uma única vida perdida e o sangue inocente que manchou Atocha para sempre.



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