segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Estrada, sagrada estrada !







Viajar por culturas e paisagens estranhas também pode ser uma forma de contemplação, muito próxima da religiosidade. Gosto muito de viajar assim.   Prefiro o estilo mochileiro, que me deixa livre, leve e solto, além de sair muito mais barato, claro. Nas cidades, prefiro andar de metrô ou ônibus. É impossível andar por Paris, Londres, Madrid, São Paulo, se não for assim. Uma vez fui de trem ao Charles De Gaulle pegar o vôo para Madrid. Encontrei um brasileiro sozinho na fila do checkin. Ele levava quatro malas imensas e pagou 80 euros de taxi. Eu havia gasto 4, imagina a diferença de estilos. Ele só queria saber de como estava indo a Bolsa de Valores em SP, de onde eu tinha saído uma semana antes e ele achava que eu poderia ter informações úteis. Ao final, perguntou-me se eu havia ido ao Crazy Horse. Esse também é o nome da minha banda de rock preferida e, para espanto do meu parceiro de fila, eu perguntei: "Eles estavam aqui? Puxa vida, como fui perder essa?".  Desfeitos os equívocos, ficou claro que o Cavalo Louco em questão é uma casa de dançarinas de can can,  rs rs rs. 

Gosto de associar a viagem a um propósito cultural. Já fiz todo o roteiro de Van Gogh, desde sua vila rural na Holanda até seu túmulo nos arredores de Paris, passando pelas margens do Rhone no sul da França. Desci em Barcelona para "caminar" com Caetano Veloso e sua vaca profana pelas "ramblas", com Miró e Gaudi,  depois fui de trem até a Noruega, ver as loiras mais sensuais e lindas do planeta. Fui  num coro cantar nos grandes templos católicos, Lourdes, Fátima, Saragoza, El Escorial, Santo Antonio em Lisboa, Matosinhos no Porto e Santiago de Compostela na Galícia. Visitei alguns dos mais deliciosos terroirs do planeta (locais especiais de cultivo de uvas para vinhos) provando seus encantos, da Borgonha aos vinhedos das terras altas arriba do Minho, o mais fino branco sequíssimo da Andaluzia ao branco frutado da Pomerânia, caminhadas à pé pelas montanhas alpinas e passeios de carro entre milhares de Chateauxs pela planície sem fim de Bordeaux.

Gosto da simplicidade, da natureza e das tradições populares. Evito o luxo e a luxúria. A elite econômica e intelectual não me interessa.   A Europa é muito boa, mas também é muito cara. Podemos curtir nossos vizinhos sul americanos e a viagem sairá muito  mais em conta, mas, mesmo em Buenos Aires, eu prefiro as casas de tango mais simples, na periferia, sem aquela ostentação para turistas estrangeiros.  Certa vez, hospedei-me na Avenida Corrientes,  num hotelzinho defronte ao mercado público "del Abasto", onde cresceu Gardel. Naquela área estão as casas de tango da juventude e você pode ver num palco iluminado como se fosse rock and roll, bandas com até dez bandoneões eletrificados. É uma loucura... 

Houve um tempo em que todos os países do Cone Sul, nossos vizinhos, estavam submetidos a tenebrosas ditaduras militares. A primeira foi a do Brasil (1964), seguida por Uruguai, Chile e a última, Argentina (1976). Já, Paraguai e Bolívia sempre foram ditaduras. O sufoco era grande, não havia liberdade para nada e o seu próprio vizinho poderia ser seu delator, por que não se necessitava motivo para prender um cidadão, submetê-lo a todo tipo de humilhação e violência, e até tirar-lhe a vida, se o indivíduo que estivesse na posse transitória do seu corpo indefeso assim o desejasse. No caso do sujeito ser acusado de crime mais grave, como pertencer a algum grupo guerrilheiro, por exemplo, ou simplesmente ajudá-los financeiramente ou estruturalmente, as torturas poderiam ser insuportáveis e muita gente morreu sob elas, em todos os países do sub continente, inclusive no Brasil.

Por essa época, uma parte da juventude mais descolada, saia a percorrer as trilhas do interior do continente, onde não havia nada, a não ser memórias de outros tempos. Foi assim que um grupo de hippies argentinos, fugindo da violência em Buenos Aires, fundaram a aldeia de El Bolson, uns cem quilômetros abaixo de Bariloche, incrustada num vale no meio dos Andes, na altura do equivalente chileno de Chiloé, outro refúgio famoso. Ao norte, entre Argentina, Chile e Bolívia, a província de Salta era um dos roteiros preferidos dos brasileiros, por que reunia também vários jovens europeus e norte americanos, todos em busca do deserto de Atacama, cujo acesso pelo oeste se dá cruzando a fronteira em Salta. Ainda hoje, vale a pena uma visita. Não há cantina italiana, francesa, espanhola ou mesmo portuguesa, que se compare ao prazer de tomar um branco seco no deserto de Cafayate.




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